quinta-feira, 26 de setembro de 2013

OS DONOS DA LÍNGUA

A estória que vos vou contar aconteceu no tempo em que os animais falavam, ou melhor, em que falavam todos o mesmo idioma.

O Senhor Cão, o animal mais velho da floresta, era uma espécie de guardião do verbo. Na verdade via-se a si próprio como o legítimo proprietário da fala.
- A palavra foi criada pelos cães, os quais, por gentileza, a emprestaram aos outros animais - explicava aos filhos. - O vosso avô, o Velho Cão, andou por toda esta floresta, descobrindo e nomeando as coisas: rios, lagos, rochedos, montes e vales, árvores, ervas, flores, frutos, os pequenos insectos, nevoeiros, chuvas, o lodo e a lama. Enfim, tudo. O que nós, cães, não conhecemos, não existe; o que não tem nome, não existe. Assim, a existência da floresta deve-se a nós. Este é um Mundo Cão.
A Senhora Sucuri não gostava de ouvir aquele discurso. Era o animal maior da floresta, falava tão bem como o Senhor Cão, e, como ele, usava chapéu. "A língua pertence a todos", dizia, "da mesma forma que um rio constrói o seu caminho e depois é ele esse caminho, assim nós fazemos uma língua e a seguir ela nos refaz". A Senhora Palanca achava o mesmo, mas era mais dramática: "A língua sou eu!"; e o Senhor Papagaio repetia: "A língua sou eu, a língua sou eu!". Tímida, a Corça propunha uma outra formulação: "A minha Pátria é a minha língua"; e o Senhor Papagaio repetia: "A minha Pátria é a minha língua, a minha Pátria é a minha língua".
Um dia o Senhor Cão foi passear para a zona mais remota da floresta, como costumava fazer, empurrado pelo desejo de descobrir coisas novas às quais pudesse dar nome (e existência). A luz era escassa, húmida e verde, naqueles deslimites. Uma lama espessa escondia o chão. As próprias árvores pareciam perigosas.
Algumas tinham os troncos cobertos de picos, outras de resina ácida, flores de uma melancolia crepuscular devoravam tudo em seu redor.
Ali, meio imerso na lama, o Senhor Cão descobriu o esqueleto de um animal desconhecido. Aproximou-se para o estudar melhor, ansioso por lhe dar um nome, agregando-o dessa forma à floresta, ao universo, à imensidão das coisas existentes, mas não lhe ocorreu nada. Ficou assim muito tempo, rondando aquela morte que lhe desorganizava o pensamento. "Como te chamas?", perguntou, já desesperado, e então, para seu grande espanto, o esqueleto ergueu-se e respondeu: "O meu nome? Nunca tive nome.
O Senhor Cão assustou-se:
- O nome é um resumo da alma - disse -, tudo o que existe ou existiu, ou até que se acredita que possa vir a existir, tem de ter um nome.
O esqueleto chocalhou os ossos, indiferente à perplexidade do outro:
- Eu nunca tive. Vivi e morri sem que ninguém me nomeasse.
Naquela tarde os outros animais viram o Senhor Cão regressar a casa de cabeça baixa. Achava-se um falhado. Descobrira algo de novo na Floresta e não fora capaz de lhe dar um nome. Adoeceu de desgosto. Alguns dias depois, preocupada, a Senhora Corça foi saber o que se passava e encontrou o Cão às portas da morte.
"Morro", disse-lhe este, "sem ter cumprido o meu papel nesta Floresta". E morreu. Durante uma semana os animais choraram, dançaram e beberam o morto, conforme a tradição, e depois lançaram o seu cadáver ao rio, e o rio arrastou-o até à zona mais remota da floresta.
Anos depois, ou séculos, não importa, o cão foi parar junto às ossadas do animal desconhecido.
- Estou a conhecer-te - disse o esqueleto. - Tu és o cão. Aquele que se julgava o dono da língua. Mas morreste e a língua continua. Os outros animais servem-se dela, agora, como se fosse um perpétuo Domingo.
- Já alguém te deu um nome? - quis saber o cão - Só isso me interessa.
O outro riu-se:
- Sim - disse -, chamam-me Escuridão.                   

José Eduardo Agualusa, 
in “Pontes Lusófonas”,  revista do Instituto Camões


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