“Suspeitemos da literatura"
Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, o novo livro de
Mário de Carvalho, reúne anos de reflexão sobre o acto de escrever. A
experiência, argumenta, confirma que são poucos os génios e muitos mais
os charlatões.
“Estas são reflexões de um homem de ofício", avisa Mário de Carvalho. E um dos principais convites a quem entrar neste que guia de escrita de ficção, que é também um guia de leitura (porque “dificilmente haverá um bom escritor onde não houver um bom leitor”) é o convite à suspeita. “Suspeitar que há outros mundos, outra gente, outros livros, outras ideias, de que pode haver uma coisa e o seu contrário", como sugere logo à entrada o título, algo provocatório, Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão. É o mais recente livro de Mário de Carvalho. Não é ficção, não gosta de lhe chamar ensaio porque foge às regras da academia. “Acho que se dissermos que é uma divagação encontramos mais ou menos a forma deste livro”, esclarece o autor que reuniu em cerca de 300 páginas anos de reflexões sobre o acto de escrever.
Leia, observe, anote, pense no que quer fazer — e
trabalhe muito. Numa sinalética simplista, esta podia ser a síntese,
incompleta e até talvez até errada, porque isso de se “dever fazer”
assusta este autor que insiste na suspeita, embora não se coíba de
apontar caminhos e fale mesmo de pactos essenciais em ficção, como o que
se faz entre o escritor e o leitor. Não um pacto tranquilo, mas que
permita passar a emoção, perceber a ironia; que a partir de uma série de
referências comuns – culturais, de vida – haja uma relação de
entendimento, nem que seja pelo desacordo. Por isso também o leitor está
sempre a ser para aqui chamado. Ele e escritor são um uno. Na obra a
construir e em todas as partilhadas na construção do tal colectivo para
que qualquer escritor quer falar. “Dificilmente levo a sério um escritor
que não tenha uma base de leituras. Não quer dizer que sejam aquelas
que eu sindico no livro, simplesmente temos de partir de um cânone — nem
que seja para o rejeitar, mas quando rejeitamos temos saber o que
estamos a rejeitar. Uma escrita que não tenha em conta a tradição
literária, que ignore uma espessura que vem de trás e esteja sempre a
descobrir coisas que já estão descobertas, é uma escrita que não vale a
pena”, refere Mário de Carvalho para começo de uma conversa com o
Ípsilon sobre um livro que é também uma resposta a muito “charlatanismo”
numa área que se convencionou chamar, tantas vezes de forma abusiva, de
ensino da escrita criativa. “Isto é um negócio de auto-ajuda e muitas
vezes essas regras são-nos apresentadas com um grande assertivismo. Eu
tento demostrar no meu livro que grandes autores, dos tais que se
‘devem’ frequentar, como o Maupassant ou o Flaubert ou o Tchékhov,
transgrediram essas normas habituais nos cursos de escrita criativa — e
transgrediram em grande, a ponto de muitas vezes fazerem o contrário”,
continua Mário de Carvalho, cauteloso sempre que usa a palavra “deve-se”
a não ser quando se trata do dever de se conhecer, enquanto leitor,
obras fundadoras.
Partindo de exemplos de obras que considera referências literárias (e aqui é preciso ter sempre em conta alguma subjectividade, a da escolha do autor), Mário de Carvalho dá uma enorme e completa aula de escrita. Dividido em seis capítulos, por sua vez subdivididos em 59 pontos práticos, o guia agora publicado desmonta o trabalho oficinal por trás de uma obra de ficção. Dá conselhos, aponta erros comuns, desfaz ideias feitas, mostra que o óbvio nem sempre é assim tão clarividente, revela dicas para o bom uso da língua e os efeitos que cada decisão tem na obra de ficção que se está a construir. No tom provocatório que Mário de Carvalho gosta de colocar no que faz e diz, este podia se um guia comportamental. Mas Mário de Carvalho prefere a justificação simples e clara: “Partindo da minha já longa experiência de escrita e de todas as contingências pelas quais o escritor passa, pensei que poderia ter interesse, nomeadamente para jovens autores, mas até para o próprio leitor, perceber a génese destas coisas."
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