sexta-feira, 21 de novembro de 2014

"Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão"


“Suspeitemos da literatura"


Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, o novo livro de Mário de Carvalho, reúne anos de reflexão sobre o acto de escrever. A experiência, argumenta, confirma que são poucos os génios e muitos mais os charlatões.

“Estas são reflexões de um homem de ofício", avisa Mário de Carvalho. E um dos principais convites a quem entrar neste que guia de escrita de ficção, que é também um guia de leitura (porque “dificilmente haverá um bom escritor onde não houver um bom leitor”) é o convite à suspeita. “Suspeitar que há outros mundos, outra gente, outros livros, outras ideias, de que pode haver uma coisa e o seu contrário", como sugere logo à entrada o título, algo provocatório, Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão. É o mais recente livro de Mário de Carvalho. Não é ficção, não gosta de lhe chamar ensaio porque foge às regras da academia. “Acho que se dissermos que é uma divagação encontramos mais ou menos a forma deste livro”, esclarece o autor que reuniu em cerca de 300 páginas anos de reflexões sobre o acto de escrever.

Leia, observe, anote, pense no que quer fazer — e trabalhe muito. Numa sinalética simplista, esta podia ser a síntese, incompleta e até talvez até errada, porque isso de se “dever fazer” assusta este autor que insiste na suspeita, embora não se coíba de apontar caminhos e fale mesmo de pactos essenciais em ficção, como o que se faz entre o escritor e o leitor. Não um pacto tranquilo, mas que permita passar a emoção, perceber a ironia; que a partir de uma série de referências comuns – culturais, de vida – haja uma relação de entendimento, nem que seja pelo desacordo. Por isso também o leitor está sempre a ser para aqui chamado. Ele e escritor são um uno. Na obra a construir e em todas as partilhadas na construção do tal colectivo para que qualquer escritor quer falar. “Dificilmente levo a sério um escritor que não tenha uma base de leituras. Não quer dizer que sejam aquelas que eu sindico no livro, simplesmente temos de partir de um cânone — nem que seja para o rejeitar, mas quando rejeitamos temos saber o que estamos a rejeitar. Uma escrita que não tenha em conta a tradição literária, que ignore uma espessura que vem de trás e esteja sempre a descobrir coisas que já estão descobertas, é uma escrita que não vale a pena”, refere Mário de Carvalho para começo de uma conversa com o Ípsilon sobre um livro que é também uma resposta a muito “charlatanismo” numa área que se convencionou chamar, tantas vezes de forma abusiva, de ensino da escrita criativa. “Isto é um negócio de auto-ajuda e muitas vezes essas regras são-nos apresentadas com um grande assertivismo. Eu tento demostrar no meu livro que grandes autores, dos tais que se ‘devem’ frequentar, como o Maupassant ou o Flaubert ou o Tchékhov, transgrediram essas normas habituais nos cursos de escrita criativa  e transgrediram em grande, a ponto de muitas vezes fazerem o contrário”, continua Mário de Carvalho, cauteloso sempre que usa a palavra “deve-se” a não ser quando se trata do dever de se conhecer, enquanto leitor, obras fundadoras.


Mário de Carvalho fala agora de originalidade, uma qualidade que se “exige” a quem escreve. Para a defender enquanto valor, recupera a tal tradição em que se deve fundar a escrita. “Os livros fazem-se sobre livros e contra livros. Há uma tradição literária. Não estou a defender o conservantismo, estou a falar de formas artísticas que se transmitem de geração em geração e entram no tal acervo que aceitamos ou rejeitamos — temos de trabalhar com ele ou contra ele. É preciso conhecê-lo e depois toca a rebelar-nos. Entendo isso perfeitamente. Há imensos exemplos históricos que já se tornaram canónicos de gente que se rebelou contra o cânone.” Muita da história da literatura do século XX é feita de rebeliões contra os cânones literários, lembra: “Estou a pensar nos dadaístas e nos surrealistas, que ainda hoje são lidos e que não podemos deixar de frequentar quando pensamos numa literatura transgressiva. Temos de ver que aquilo existiu, que já está lá, não vamos repeti-los.” Não faltam exemplos de textos com sucesso mas que revelam essa falta de saber para trás e que “não resistiriam ao simples teste da página 99”. Outra regra simples, defendida por muitos para aferir da qualidade de um texto: abra-se um livro na página 99 e percebe-se se vale a pena continuar. “Não vale a pena comer um ovo estragado todo para saber se ele está mesmo estragado. Basta uma página ou duas de um livro para ver em que base é que se afirma, se o autor é original ou nos está a dar fórmulas requentadas, repisadas por séculos e séculos de literatura. O autor pensa que está a inventar, mas está apenas a repetir, a reproduzir. Isso é um bocado penoso de ver. A utilização muito alegre e desprevenida da banalidade, do lugar-comum; ao fim e ao cabo, a repetição do que está feito.”
Partindo de exemplos de obras que considera referências literárias (e aqui é preciso ter sempre em conta alguma subjectividade, a da escolha do autor), Mário de Carvalho dá uma enorme e completa aula de escrita. Dividido em seis capítulos, por sua vez subdivididos em 59 pontos práticos, o guia agora publicado desmonta o trabalho oficinal por trás de uma obra de ficção. Dá conselhos, aponta erros comuns, desfaz ideias feitas, mostra que o óbvio nem sempre é assim tão clarividente, revela dicas para o bom uso da língua e os efeitos que cada decisão tem na obra de ficção que se está a construir. No tom provocatório que Mário de Carvalho gosta de colocar no que faz e diz, este podia se um guia comportamental. Mas Mário de Carvalho prefere a justificação simples e clara: “Partindo da minha já longa experiência de escrita e de todas as contingências pelas quais o escritor passa, pensei que poderia ter interesse, nomeadamente para jovens autores, mas até para o próprio leitor, perceber a génese destas coisas."

Sem comentários:

Enviar um comentário