sexta-feira, 27 de março de 2015

No Dia Mundial do Teatro, o poema "O Actor" de Herberto Hélder


O ator acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O ator põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o ator.
O ator acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O ator toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O ator estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o ator, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso ator que tira e coloca
e retira
o adjetivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o ator está como a maçã.
O ator é um peixe.

Sorri assim o ator contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O ator que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o ator é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O ator diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O ator acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O ator é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o ator.
Como a unidade do ator.

O ator é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o ator é um adjetivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O ator é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o ator levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o ator.
Como o corpo do ator.

Porque o talento é transformação.
O ator transforma a própria ação
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O ator cresce no seu ato.
Faz crescer o ato.
O ator atifica-se.
É enorme o ator com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o ator com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o ator.
Como o secreto ator.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O ator ama em ação de estrela.
Ação de mímica.
O ator é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O ator vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O ator vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o ator.
Como a essência do amor do ator.
O teatro geral.

O ator em estado geral de graça.

(Herberto Hélder, "Poemato" III)

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