ao
fundo brilha tenuemente a chapazinha do número duzentos e um, é então
que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia
luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a
qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado na sofá estava um
homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e
não pensou que fosse acontecimento irregular estar ali à sua espera
Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia,
nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu,
disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem
passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar,
considerando a insignificância da frase. Ricardo Reis despiu a
gabardina, pousou o chapéu, arrumou cuidadosamente a guarda-chuva no
lavatório, se ainda pingasse lá estaria o oleado do chão, mesmo assim
certificou-se primeiro, apalpou a seda húmida, já não escorre, durante
todo o caminho de regresso não chovera. Puxou uma cadeira e sentou-se
defronte do visitante, reparou que Fernando Pessoa estava em corpo bem
feito, que é a maneira portuguesa de dizer que o dito corpo não veste
sobretudo nem gabardina nem qualquer outra protecção contra o mau tempo,
nem sequer um chapéu para a cabeça, este tem só o fato preto, jaquetão,
colete e calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a
meia, como se apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício
enterrar os outros. Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão
contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência, e é
Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não
estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim,
Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio,
ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando
Pessoa,
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis
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